Curadorias

2017

Como é que eu sabia?

Curadoria para exposição de Guga Szabzon na galeria Superfície. 

Dizem que os mares da Lua são planícies vastas e escuras de basalto que povoam a superfície do satélite. Estudiosos dos corpos celestes costumam afirmar que essas topografias são formadas pelo impacto de meteoritos desgovernados que se chocam contra a pálida esfera. Para classificar os leitos desgastados da superfície lunar, a nomenclatura científica também inclui oceanos, lagos, pântanos e baías. Contudo, as teorias costumam ser contraproducentes e aqui falamos de prática literária, sendo assim advirto que certas palavras podem estar contaminadas por suas vizinhas. Pois bem, certo literato latino que imprudente observava um mapa da Lua notou que seus “mares” e “rios”, embora apartados, sólidos e ausentes, conforme os enunciados técnicos, perpetuam abstratamente a lembrança de antigas águas. Ela, filha de titãs e irmã do deus Sol, em tempos antigos, era um afloramento aluviano, um inesgotável manancial do qual fluíam rios de voluptuosa cintura, devoradores de montanhas, alpinistas destemidos. Esses rios teciam-lhe uma trança que descia pelo fino desnível entre suas omoplatas e pendia envolvendo paisagens minerais, desenhando copiosa hidrografia. Orientadas por trópicos e linhas do equador, no contorno das costas da deusa Selene, roçavam espumas navegáveis, que delineavam arquipélagos, penínsulas, angras, canais e lagoas profundas. Do cume ao curso dos rios, em ondas e chuvas, a Lua era um centro de gravidade, uma fonte termal, um campo magnético, um Atlas suculento. No entanto, nos conta Oráculo Tajzri, certa vez a Terra invejosa, imbuída de brutal crueldade, concentrou as reservas de sua força de atração e, partindo do pico do Kilimanjaro, arrancou da lua suas tranças multiformes. Com a boca aberta, esperou salivante a chegada da vasta corrente, ansiosa por se adornar com ela e esconder debaixo do líquido cosmético sua feiura. Selene ficou desnuda, seca e branca qual uma pequena pérola fosforescente. Diz-se que o filho da Lua, chamado Museu, se instalou no alto do Jbel Toubkal, cordilheira que separa as terras costeiras do Mar Mediterrâneo e do Oceano Atlântico das terras áridas do Saara, de onde podia observar, refratário, o manto aquático roubado. Como nenhum Museu tem asas, a não ser que pudesse retirar a força da gravidade ao passado, ele se apartou nas alturas da montanha de onde podia olhar na água o espelho do céu. Seduzido pelo vazio de sua janela que parecia dar para uma imensa e imóvel realidade externa, se deleitava com prata e espuma nos olhos ao perceber que esta paisagem bruscamente se reduzia a um único ponto dentro de seu crânio. As imagens sonhadas ou imaginadas por ele eram capazes de conter toda a extensão do mundo mas, ao mesmo tempo, habitar uma mente solitária, caber nela. — “Se dentro de minha mente não há extensão nenhuma e em qualquer imagem minha posso representar tudo o que vi, é porque simplesmente não existe a amplidão, todo o universo não é mais que um ponto, não é mais que uma ideia, uma imagem em minha alma. Sintamos, amada mãe, o vazio do mundo, da apreensão geométrica das coisas, do universo, a plenitude, a certeza da paixão única, da escavação, do espelhamento e da escrita, num ciclo de deterioração e renovação simultâneas”.

Joana Barossi