Curadorias
2017
O serviço das formigas
![](https://freight.cargo.site/t/original/i/a0be18678bb28ea38b102970d3c6e8b58fab658d1549b9dbe399014da2596cc7/Captura-de-Tela-2018-11-15-as-18.46.45.png)
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curadoria e texto crítico, projeto jardim imaginário, fundação ema klabin.
Mobiliário
texto Para “O serviço das Formigas”, de João Loureiro
1
É estranho que o espaço do Museu possa, muitas vezes ainda, nos convencer de seu lastro de imortalidade. Ao adentrá-lo, inadvertidamente, ainda nos pegamos à espera de uma experiência única de suspensão temporal: um edifício emblemático da construção da própria História, que como um monumento, já existia antes de nós, e como um mausoléu, sobreviverá à nossa existência. A alienação sofrida pelos objetos de uma coleção por meio de sua retirada da vida comum ainda nos ilude quanto à inevitabilidade de seu desaparecimento e decrepitude.
Pois já deveríamos ter-nos acostumado a associar a conservação ao trânsito, e não ao imóvel. Guardar sempre significou, em certa medida, transportar. E muitas vezes o ato de preservar das intempéries do mundo algo de valor se traduz em colocá-lo em movimento contínuo, na esperança de torná-lo menos tangível, a salvo de nossos próprios planos.
A imobilidade tarda a cobrar sua dívida inevitável. Obrigamo-nos então a inventar modos de segurar, embalar, esconder e restaurar. Temos de nos acostumar ao tilintar das louças no caminho. E quando se fizer a história destes objetos que correram o mundo às custas da ocupação de nossas dias e preocupação de nossas noites, muitas vezes ainda terão mais vida do que nós mesmos.
2
Não se trata exatamente de um trem. O que percebemos neste entrar e sair contínuo da casa que abriga a Fundação Ema Klabin é antes o movimento e a previsibilidade, a evidência de que algo se transporta e se organiza. Uma máquina de redesenhar o espaço, inclusive pelas relações de escala e proporção impostas pelo seu tamanho que, embora escape da miniatura, não se agiganta a ponto de violentar o acervo em sua composição habitual.
Os trilhos pelos quais se move esta discreta estrutura são um primeiro indício desta evidência. Contudo, logo se vê que a relação entre suporte e carga faz desta série de vagões também uma espécie de móvel de exposição para um serviço de louças que giram coladas a eixos verticais, e assim parecem saudar o espectador do modo mais incontinente. Puxam a fila os pratos rasos, protótipos de pratos, seguidos pelos pratos fundos, depois pelos de sobremesa. Xícaras de chá e seus respectivos pires fecham o cortejo como se encerrassem o ato de servir. Esperava-se que a máquina fosse dona de seu conteúdo, mas revela-se o inverso: é a pequena coleção que desfila sobre ela. Depois, repara-se nos desenhos de formigas que, estampadas em cada peça, carregam objetos de várias funções e tamanhos. Fazem referência direta a valores transportáveis, a indícios das festas que eram tradição na casa, e outros ainda nos remetem ao próprio imaginário proposto pela intervenção, num jogo de rebatimento entre os objetos e suas representações. Estas figuras acabam tomando um primeiro plano narrativo, e a fileira de formigas emerge como uma imagem guia para nossa percepção. O aspecto silencioso do trabalho que a imagem de todo objeto oblitera é revelado – o cuidado, que se repete dia após dia, gasto na guarda das coleções, e que evapora das superfícies das peças à revelia de toda devoção despendida. A vida funcionária de uma coletividade anônima que reconhece o mundo mais pelo peso do que pelo valor.
3
As formigas talvez deem continuidade à nossa tarefa zelosa quando desistirmos de continuar, quando finalmente formos capazes de valorizar o esquecimento – essa competência viva, que estranha todo museu – de quem acredita sem ressalvas na imortalidade de nossos feitos. Quando, por fim, desistirmos de qualquer deslocamento.
Gilberto Mariotti
_
foto: marcos gorgatti
Mobiliário
texto Para “O serviço das Formigas”, de João Loureiro
1
É estranho que o espaço do Museu possa, muitas vezes ainda, nos convencer de seu lastro de imortalidade. Ao adentrá-lo, inadvertidamente, ainda nos pegamos à espera de uma experiência única de suspensão temporal: um edifício emblemático da construção da própria História, que como um monumento, já existia antes de nós, e como um mausoléu, sobreviverá à nossa existência. A alienação sofrida pelos objetos de uma coleção por meio de sua retirada da vida comum ainda nos ilude quanto à inevitabilidade de seu desaparecimento e decrepitude.
Pois já deveríamos ter-nos acostumado a associar a conservação ao trânsito, e não ao imóvel. Guardar sempre significou, em certa medida, transportar. E muitas vezes o ato de preservar das intempéries do mundo algo de valor se traduz em colocá-lo em movimento contínuo, na esperança de torná-lo menos tangível, a salvo de nossos próprios planos.
A imobilidade tarda a cobrar sua dívida inevitável. Obrigamo-nos então a inventar modos de segurar, embalar, esconder e restaurar. Temos de nos acostumar ao tilintar das louças no caminho. E quando se fizer a história destes objetos que correram o mundo às custas da ocupação de nossas dias e preocupação de nossas noites, muitas vezes ainda terão mais vida do que nós mesmos.
2
Não se trata exatamente de um trem. O que percebemos neste entrar e sair contínuo da casa que abriga a Fundação Ema Klabin é antes o movimento e a previsibilidade, a evidência de que algo se transporta e se organiza. Uma máquina de redesenhar o espaço, inclusive pelas relações de escala e proporção impostas pelo seu tamanho que, embora escape da miniatura, não se agiganta a ponto de violentar o acervo em sua composição habitual.
Os trilhos pelos quais se move esta discreta estrutura são um primeiro indício desta evidência. Contudo, logo se vê que a relação entre suporte e carga faz desta série de vagões também uma espécie de móvel de exposição para um serviço de louças que giram coladas a eixos verticais, e assim parecem saudar o espectador do modo mais incontinente. Puxam a fila os pratos rasos, protótipos de pratos, seguidos pelos pratos fundos, depois pelos de sobremesa. Xícaras de chá e seus respectivos pires fecham o cortejo como se encerrassem o ato de servir. Esperava-se que a máquina fosse dona de seu conteúdo, mas revela-se o inverso: é a pequena coleção que desfila sobre ela. Depois, repara-se nos desenhos de formigas que, estampadas em cada peça, carregam objetos de várias funções e tamanhos. Fazem referência direta a valores transportáveis, a indícios das festas que eram tradição na casa, e outros ainda nos remetem ao próprio imaginário proposto pela intervenção, num jogo de rebatimento entre os objetos e suas representações. Estas figuras acabam tomando um primeiro plano narrativo, e a fileira de formigas emerge como uma imagem guia para nossa percepção. O aspecto silencioso do trabalho que a imagem de todo objeto oblitera é revelado – o cuidado, que se repete dia após dia, gasto na guarda das coleções, e que evapora das superfícies das peças à revelia de toda devoção despendida. A vida funcionária de uma coletividade anônima que reconhece o mundo mais pelo peso do que pelo valor.
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As formigas talvez deem continuidade à nossa tarefa zelosa quando desistirmos de continuar, quando finalmente formos capazes de valorizar o esquecimento – essa competência viva, que estranha todo museu – de quem acredita sem ressalvas na imortalidade de nossos feitos. Quando, por fim, desistirmos de qualquer deslocamento.
Gilberto Mariotti
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foto: marcos gorgatti