curadoria e texto crítico, projeto jardim imaginário, fundação ema klabin.
Click; Slide; Skip>
texto Para “Controle remoto”, de Gisela Motta e Leandro Lima.
Pelo caminhar ao redor de “Controle remoto”, desenha-se um núcleo base de unidades habitacionais, pronto para ser replicado aos milhões. Simultâneo ao movimento de aproximação, que oferece controle e desenho sobre o plano - um olhar topográfico que tranqüiliza -, nos acolhem sons que reconhecemos como familiares. Olhar ao redor nos afastaria, pela recuperação da relação inicial de escala entre observador e o recorte de bairro planejado. Mas o convite do chiado intermitente de uma invasão domiciliar diária e em massa acaba por nos vencer. A este espaço abstrato ou terra arrasada, de ondas que carregam informações ambíguas, dicas de sobrevivência, normas de conduta e estímulos a um prazer padronizado, todos nós já demos, em algum momento, o nome de “casa”. Curiosamente, este lugar de proteção em que nos fechamos se submete ao espaço em que nos abrimos para as mais absurdas demandas.
Mas de que se trata “Controle remoto”? De um comentário sobre um mundo pregresso, em que ainda não nos era dada a competência de interagir, de filtrar, de escolher? É confortável afirmar a postura de “meros expectadores passivos” como pertencente a um passado nostálgico. Ao contrário, “Controle remoto” nos fala do que ainda somos. Condições conflitantes colaboram entre si, formas e cenas se articulam em novas configurações midiáticas que se complementam, cúmplices na gambiarra de todos os dias. Apesar da propagação de uma revolução digital em curso enquanto notícia, apesar das novas configurações do ser e do sentir, cujo efeito ainda não conseguimos mensurar, ainda nos sentamos para assistir programações e percorrer circuitos reservados ao lazer, em horários previstos no quadro de atividades que reiniciamos a cada dia.
*
Por este caminhar ao redor de “Controle remoto”, de um movimento contraditório entre diferentes percepções de escala, nasce um hiato aberto pelo trabalho - sua morada -, entre a familiaridade do que se esconde e só podemos ouvir e a estranheza do espaço reservado ao compartilhamento de qualquer experiência. Uma lacuna que torna difícil nossa articulação deste espaço: enquanto nos aproximamos como que agigantados deste bairro ajuntado que tem algo de maquete, e tendemos a olhar pelo buraco de cada casa como se o de uma fechadura, o reconhecimento das imagens pelo som que nasce de cada aparelho nos transporta para dentro, e para isso temos de novamente nos apequenar. Um movimento que evidencia algumas de várias distâncias recuperadas aqui: da distância programada entre este conjunto de casas; da distância percorrida pelos pássaros em suas migrações programadas (como nestes programas de TV que nos contam como eram as coisas na natureza); da distância entre os sofás da cidade e os televisores, janelas e lugares de passagem, meios e finalidades; da distância que parece instransponível entre um “nós” e um “eles”.
A este movimento dado pela possibilidade de experimentar a contradição por meio de um caminhar, dos sentidos arredios à organização espacial prévia ou pela aproximação desconfiada, talvez se oponha o mudar de canal, a escolha que se apresenta adiante, sempre pelo seguir em frente, pelo qual, sentados, vamos tirando da frente o mundo ao substituí-lo por outro, um quase igual ao anterior, correspondente à uma expectativa cada vez menor.
A edição já não produz diferença ou é a diferença o sinal mesmo da evidência da uma linha inescapável de programação? Reclama-se uma edição possível, como uma ação autoral, ao manipularmos o controle remoto. Uma edição pelo Click. Resta do argumento de que uma forma fílmica pode evidenciar para o espectador a própria possibilidade de edição da vida, significando sua emancipação, poética e estética reintegradas: “Desse modo, os procedimentos da câmara correspondem aos procedimentos graças aos quais a percepção coletiva do público se apropria dos modos de percepção individual do psicótico ou do sonhador”.
*
Por um caminhar pelo texto, voltamos à reescrita de seus espaços. Assisti-se sempre a um fragmento disponível. “O plano geral e os movimentos de câmera proporcionaram uma investigação do mundo ao nosso redor e de nosso cotidiano, além de despertar características da realidade visível até então desconhecidas. Ao mesmo tempo em que expuseram os inúmeros condicionamentos que determinam nossa existência, ofereceram [...] um grande e insuspeitado espaço de liberdade”. A autoria se perde, na medida em que o discurso que se forma não espera de nós qualquer resposta: responsabilidade é a capacidade de responder. Toda fala recortada, mesmo a que ouvimos ao passar pela calçada, não deixa de ser uma citação, que sempre nos chega replicada a distância. Mesmo as imagens que, cortadas, nos alcançam, sobre o suporte da cidade, vão sendo dispostas como que lidas por um narrador ausente. O deslize de uma fala a outra pode produzir um contra discurso? A edição pelo Slide. “[...] só nos três primeiros slides ele ficou meia hora; mudou a tela de lugar, de modo que os slides sofriam um corte ao serem projetados, e ele movia o projetor de lugar para dar o corte devido a cada um: o resto do slide se espraiava pelo ambiente: [...] foi uma espécie de quase cinema, para mim tão cinema quanto tudo que se possa imaginar: a mesma simplicidade complexa que se poderia sentir em Godard [...].” Ou o escapar de um lugar a outro, uma paisagem à outra. Este mover-se randomicamente chega a possibilitar algum deslocamento? Edição por Skip>. Viver a andar por plataformas pode nos impedir continuamente de embarcar, de deixarmos nosso país de origem. Carregamos o lar em uma caixa. A tela do aparelho se faz de espelho mesmo quando emanando todas as suas luzes, e nossa identidade ainda se faz no olhar neste espelho o nosso ideal. “Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...”
*
Ainda a caminhar pelo bairro, se nos mantivermos no nível do chão, será possível evitarmos o embate com fachadas e muros? Constituem todo um universo opaco de tradições e procedimentos: o manter pintado e polido do que nos chegou só no reboco; o cuidar de si, da própria vida, da cara da qual pode emergir o que não deveria se tornar público, de tudo sobre o que ninguém dá um piu, de toda amplitude que carrega nossa privacidade. “A própria mulher de Germiniano às vezes se queixava, dizia que ele estava se prejudicando por querer levar tudo a canto de esquadro, quando outros não faziam assim. Ele explicava: _ Eu sou preto, tenho de deixar o meu muro muito branco. Não posso relaxar.”
Excertos de Walter Benjamin, Hélio Oiticica, Machado de Assis e José J. Veiga.
Gilberto Mariotti
fotos: Ding Musa
Click; Slide; Skip>
texto Para “Controle remoto”, de Gisela Motta e Leandro Lima.
Pelo caminhar ao redor de “Controle remoto”, desenha-se um núcleo base de unidades habitacionais, pronto para ser replicado aos milhões. Simultâneo ao movimento de aproximação, que oferece controle e desenho sobre o plano - um olhar topográfico que tranqüiliza -, nos acolhem sons que reconhecemos como familiares. Olhar ao redor nos afastaria, pela recuperação da relação inicial de escala entre observador e o recorte de bairro planejado. Mas o convite do chiado intermitente de uma invasão domiciliar diária e em massa acaba por nos vencer. A este espaço abstrato ou terra arrasada, de ondas que carregam informações ambíguas, dicas de sobrevivência, normas de conduta e estímulos a um prazer padronizado, todos nós já demos, em algum momento, o nome de “casa”. Curiosamente, este lugar de proteção em que nos fechamos se submete ao espaço em que nos abrimos para as mais absurdas demandas.
Mas de que se trata “Controle remoto”? De um comentário sobre um mundo pregresso, em que ainda não nos era dada a competência de interagir, de filtrar, de escolher? É confortável afirmar a postura de “meros expectadores passivos” como pertencente a um passado nostálgico. Ao contrário, “Controle remoto” nos fala do que ainda somos. Condições conflitantes colaboram entre si, formas e cenas se articulam em novas configurações midiáticas que se complementam, cúmplices na gambiarra de todos os dias. Apesar da propagação de uma revolução digital em curso enquanto notícia, apesar das novas configurações do ser e do sentir, cujo efeito ainda não conseguimos mensurar, ainda nos sentamos para assistir programações e percorrer circuitos reservados ao lazer, em horários previstos no quadro de atividades que reiniciamos a cada dia.
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Por este caminhar ao redor de “Controle remoto”, de um movimento contraditório entre diferentes percepções de escala, nasce um hiato aberto pelo trabalho - sua morada -, entre a familiaridade do que se esconde e só podemos ouvir e a estranheza do espaço reservado ao compartilhamento de qualquer experiência. Uma lacuna que torna difícil nossa articulação deste espaço: enquanto nos aproximamos como que agigantados deste bairro ajuntado que tem algo de maquete, e tendemos a olhar pelo buraco de cada casa como se o de uma fechadura, o reconhecimento das imagens pelo som que nasce de cada aparelho nos transporta para dentro, e para isso temos de novamente nos apequenar. Um movimento que evidencia algumas de várias distâncias recuperadas aqui: da distância programada entre este conjunto de casas; da distância percorrida pelos pássaros em suas migrações programadas (como nestes programas de TV que nos contam como eram as coisas na natureza); da distância entre os sofás da cidade e os televisores, janelas e lugares de passagem, meios e finalidades; da distância que parece instransponível entre um “nós” e um “eles”.
A este movimento dado pela possibilidade de experimentar a contradição por meio de um caminhar, dos sentidos arredios à organização espacial prévia ou pela aproximação desconfiada, talvez se oponha o mudar de canal, a escolha que se apresenta adiante, sempre pelo seguir em frente, pelo qual, sentados, vamos tirando da frente o mundo ao substituí-lo por outro, um quase igual ao anterior, correspondente à uma expectativa cada vez menor.
A edição já não produz diferença ou é a diferença o sinal mesmo da evidência da uma linha inescapável de programação? Reclama-se uma edição possível, como uma ação autoral, ao manipularmos o controle remoto. Uma edição pelo Click. Resta do argumento de que uma forma fílmica pode evidenciar para o espectador a própria possibilidade de edição da vida, significando sua emancipação, poética e estética reintegradas: “Desse modo, os procedimentos da câmara correspondem aos procedimentos graças aos quais a percepção coletiva do público se apropria dos modos de percepção individual do psicótico ou do sonhador”.
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Por um caminhar pelo texto, voltamos à reescrita de seus espaços. Assisti-se sempre a um fragmento disponível. “O plano geral e os movimentos de câmera proporcionaram uma investigação do mundo ao nosso redor e de nosso cotidiano, além de despertar características da realidade visível até então desconhecidas. Ao mesmo tempo em que expuseram os inúmeros condicionamentos que determinam nossa existência, ofereceram [...] um grande e insuspeitado espaço de liberdade”. A autoria se perde, na medida em que o discurso que se forma não espera de nós qualquer resposta: responsabilidade é a capacidade de responder. Toda fala recortada, mesmo a que ouvimos ao passar pela calçada, não deixa de ser uma citação, que sempre nos chega replicada a distância. Mesmo as imagens que, cortadas, nos alcançam, sobre o suporte da cidade, vão sendo dispostas como que lidas por um narrador ausente. O deslize de uma fala a outra pode produzir um contra discurso? A edição pelo Slide. “[...] só nos três primeiros slides ele ficou meia hora; mudou a tela de lugar, de modo que os slides sofriam um corte ao serem projetados, e ele movia o projetor de lugar para dar o corte devido a cada um: o resto do slide se espraiava pelo ambiente: [...] foi uma espécie de quase cinema, para mim tão cinema quanto tudo que se possa imaginar: a mesma simplicidade complexa que se poderia sentir em Godard [...].” Ou o escapar de um lugar a outro, uma paisagem à outra. Este mover-se randomicamente chega a possibilitar algum deslocamento? Edição por Skip>. Viver a andar por plataformas pode nos impedir continuamente de embarcar, de deixarmos nosso país de origem. Carregamos o lar em uma caixa. A tela do aparelho se faz de espelho mesmo quando emanando todas as suas luzes, e nossa identidade ainda se faz no olhar neste espelho o nosso ideal. “Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...”
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Ainda a caminhar pelo bairro, se nos mantivermos no nível do chão, será possível evitarmos o embate com fachadas e muros? Constituem todo um universo opaco de tradições e procedimentos: o manter pintado e polido do que nos chegou só no reboco; o cuidar de si, da própria vida, da cara da qual pode emergir o que não deveria se tornar público, de tudo sobre o que ninguém dá um piu, de toda amplitude que carrega nossa privacidade. “A própria mulher de Germiniano às vezes se queixava, dizia que ele estava se prejudicando por querer levar tudo a canto de esquadro, quando outros não faziam assim. Ele explicava: _ Eu sou preto, tenho de deixar o meu muro muito branco. Não posso relaxar.”
Excertos de Walter Benjamin, Hélio Oiticica, Machado de Assis e José J. Veiga.
Gilberto Mariotti
fotos: Ding Musa